31.5.06

No bar do fim da minha rua

Mais uma noite de insônia. Acendo a luz do abajour e observo por alguns minutos este quarto frio e vazio, ao som das gotas que se esmagam contra a janela. Abro a gaveta da cabeceira em busca do tabaco. Já está quase seco. A caixa de papéis-de-seda está vazia, obrigando-me a levantar da cama empoeirada e a me arrastar até o bar do fim da minha rua. Metade de mim comemora - missões são sempre bem-vindas nos momentos de tédio. Outra metade lamenta; é a metade do ócio, da preguiça e da inércia, a mesma metade responsável pela minha solidão neste quarto estreito. Do guarda-roupa tiro o mesmo casaco listrado, chinelo de dedo e gorro de lã que formam o tradicional uniforme das noites mal-sucedidas, em que a vida se anuncia, mas não acontece. Uniformes me incomodam.

Passos desapressados sobre o cimento molhado. Desvio de poças, bitucas de cigarro e de alguns mendigos petrificados nos cantos da calçada. Uma menina loira vem ríspida em minha direção. Ela é branca feita a parede do meu quarto e mexe aflita no celular. Está distante do mundo. Pisa nas poças, nas bitucas e quase tropeça num mendigo. Ela vai passar por mim. Gostaria de lhe dizer qualquer coisa, mas nada me vem na cabeça. Alguns segundos antes de nos cruzarmos, esvazio o pulmão para em seguida respirar o mais fundo que posso, e assim fruir do odor de cada partícula do seu perfume. Quero agora abraçá-la com força. Chorar junto a seu peito. Morrer ao seu lado.

Mas ela segue andando, e tudo seu que resta é o som compassado dos saltos sobre o chão, que aos poucos decresce até tornar-se inaudível. Ela já não existe mais. Sigo o caminho que vinha trilhando, cujo destino encontra-se no bar do fim da minha rua. É o único ponto de luz e cochicho ao longo da via. Lá, dois PMs conversam e um paraíba do outro lado do balcão lava copos - se uniformes me incomodam, fardas me provocam fobia.

Entro no estabelecimento sem deixar que transpareça a iminente tensão que do meu corpo se apossa, e peço ao paraíba, em tom gentil e seguro, os papéis-de-seda de rótulo cinza que estão sobre a vitrine próxima ao caixa. A requisição faz o momento suspender-se no tempo; logo me conflagro suspeito de crimes que não venho cometendo já faz alguns meses.

- Pra quê a seda? – pergunta um polícia.
- Que diferença faz? – retruco eu. O paraíba assiste atenciosamente à cena.

A troca cínica e mútua de agressões se estende até tornar-se insustentável. Eles precisam manter a postura. Eu só busco qualquer emoção que me resgate da apatia, mesmo que ela me leve ao sofrimento extremo ou, na melhor das hipóteses, a uma experiência tangente à morte. É preferível desencarnar do que voltar à já conhecida masturbação física e mental que o quarto frio costuma favorecer.

Um tapa no rosto marca os novos rumos da conversa. Seguido de algemas e terrorismo verbal, sou impetuosamente encaminhado ao banco traseiro da viatura e de lá levado à delegacia mais próxima sob a devida acusação de desacato. Mas logo me assombra a desilusão; no cenário policial, encontro o mesmo vazio e a mesma frieza do quarto que dera origem à odisséia da noite – apenas um delegado, escondendo por trás da barriga e dos bigodes sua existência desesperançosa e pobre. Nem uma dupla de prostitutas histéricas, nem um grupo de gringos vitimizados, nem mesmo o espancamento de um ladrão qualquer de galinhas de fato ocorria para acalentar meu espírito. E aquela noite que parecia convergir para algo emocionante e arriscado acabava agora na evolução do interrogatório agressivo e burocrático iniciado no bar do fim da minha rua.

Minha atitude mantém-se, em tom cínico e provador. Os dois gorilas atrás de mim se entreolham e murmuram, aguardando o sinal de seu superior para atacarem-me como fosse eu a causa de sua miserabilidade. Logo ele vem – o sinal -, e com ele os socos e pontapés pelos quais eu vinha aguardando já fazia pelo menos meia-hora. Azar o meu eles não terem fôlego para manter-me ocupado até o amanhecer do dia; mal o ponteiro havia rodeado por duas vezes o relógio na parede do hall de entrada e eu já estava livre, sem nem antes ter que assinar uma ficha criminal que pudesse servir de souvenir da minha passagem pelo batalhão. Com um sorriso no canto da boca, peço ainda ao delegado a gentileza de uma cela para passar a noite, a ser compartilhada com outro meliante qualquer de sua livre escolha. Mas meu requisito não é atendido, e nem mesmo recebo uma justificativa para tal.

Coberto de sangue e hematomas – não tanto quanto desejara -, volto eu para casa, percorrendo com os mesmos passos desapressados este cimento molhado. Desvio das mesmas poças, bitucas e mendigos, por quarteirões e mais quarteirões a fio até cruzar com o bar do fim da minha rua. Ponho a mão no bolso, a seda continua lá. Pelo menos isso.

Tiro o casaco, o chinelo e o gorro. Deito na cama. Enrolo um cigarro. Risco um fósforo e observo o deslizar da chama pela madeira, sentindo o calor se aproximar. Fecho os olhos e resisto até onde posso. Solto o palito carbonizado. Risco outro, e, agora sim, acendo o cigarro. Entro em dialética: punheta, devo ou não devo? A metade da preguiça leva vantagem. Levito.

2 Comments:

Blogger Vitória Frate said...

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3:45 PM  
Anonymous Anônimo said...

Me sentir lendo um conto do Gorki, uma observação: "Desacato a autoridade?" Difícil ver autoridade hoje em dia e tudo que está à venda em lugar lícito, não se deve satisfação a ninguém!

7:26 PM  

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