6.2.10

Ao Deus dará - Capítulo I

Acordei num salto e olhei a hora: 10:34! "Filho duma puta!!!", gritei bem alto, dei um bico no rádio-relógio e saí em disparada pelo calçamento úmido da minha ilha querida, com o mochilao vermelho sobre as costas. Era para ser um cochilo de apenas 45 minutos, mas obviamente o aparelhinho maldito nao despertou, e assim perdia mais um vôo em minha vida - este marcado para às 9:20 da manha do dia 05 de dezembro de 2009. A viagem já comecava mal. Pra piorar, ninguém da Gol me atendia e a bateria do celular estava acabando, logo nao perdi tempo e entrei no primeiro táxi que me apareceu pela frente. Rumamos para o aeroporto, e no momento em que a atendente Jordana Amorim atendeu-me desejando um bom dia, a bateria finalmente foi pro saco e fiquei falando sozinho. "Filho da puta!!!!!!", gritei novamente e dei um soco no banco de trás do carro. O motorista me olhou de rabo de olho pelo retrovisor. Pedi desculpas e escarrei ódio pela janela.

Paguei os quase 70 merréis da corrida e corri para o curral da Gol, onde uma atendente simpática com olhos verdes extraterrenos conseguiu me encaixar num vôo para o final da tarde, sem nenhum custo adicional. Mais uma vez, meu anjo da guarda falou mais alto do que as probabilidades mundanas, e assim, num suspiro aliviado, sentei-me para um café de 5 merréis e me pus a observar o movimento. A ressaca era das brabas, agravada pelo estresse recém-passado. Em algumas horas dali, deixaria aquela cidade por um tempo indeterminado, para um rumo indeterminado; Minha única determinaçao era me afastar de tudo e de todos que conhecia em busca de algo novo.

Olhando em volta, comecei a sentir pena das pessoas. Da maior parte delas, infelizente. Da maior parte do trabalho que elas faziam, precisamente. Das merdas a que elas se prestavam, basicamente. Senti pena dos garçons, que explicavam como era cada prato e o custo deles, dezenas de vezes ao dia, para burgueses estúpidos a quem ninguém pode ter vontade de servir. Senti pena dos vendedores nas lojas, que transformavam suas preciosas vidas em peças descartáveis da engrenagem fria e sistemática do capitalismo. Senti pena das aeromoças, que escondiam por trás dos sorrisos maquiados e dos cabelos escovados a mais selvagem das sexualidades. Senti ódio de todos os estabelecimentos e instituiçoes que ofuscam a imprevisibilidade das pessoas.

E, ao mesmo tempo, senti gratidao e orgulho por nao fazer parte disso - ou melhor, nao totalmente. É claro, estou preso nesse mundo como todos vocês que me lêem agora, e sou obrigado a ganhar meu próprio sustento. Mas acho que encontrei uma boa maneira de tirar proveito da situaçao. Eu e o trabalho nos damos bem, graças a Deus. Deus. Deus abençoe a arte cênica e a si mesmo, por cuidar de mim e depositar minha mesada sem atrasos todo dia 20.

Pensei também no cinema, minha maior paixao e o motivo maior da minha frustaçao profissional. Pensei nele com um sorriso singelo, sem ansiedade. Sei que quando tiver que ser, será. Enquanto isso, que venham as viagens, as peças, as novelas, as idéias mirabolantes e as mulheres. Ah, as mulheres. Elas estao aos milhoes por esse mundo, e uma hora ou outra há de cair uma das boas em minhas maos novamente. Enquanto isso, peito aberto para a vida.

Foi com essa sensaçao que me despedi do Rio de Janeiro, enquanto o Boing 737 branco e laranja se perdia por entre nuvens surreais. Tive um pequeno flerte com Francielle, a mais jeitosinha das aeromoças, e poucas horas depois posávamos em Buenos Aires. Eu e Francielle, Francielle e eu. Cada um pro seu canto. Dirigi-me à fila da imigraçao enquanto ela ia jogar fora o lixo de bordo, tirar a maquiagem emplastada da cara, bater seu ponto, brincar de upa upa cavalinho com o comandante, etc - sei lá o que as aeromoças fazem quando o aviao chega ao seu destino. Ainda na fila, conheci uma menininha fofa chamada Luiza. Luli era seu apelido - é mole? -, no auge dos seus 20 anos e dos 1,49M de altura, com cabelos loiros escorridos e olhos verdes. Calçava 33, exatamente o meu número. Me disse que era carioca e que estava indo visitar umas amigas na cidade de Pillar, há uma hora dali. Papo vai, papo vem, trocamos o número do rádio e saí batido para nao perder o ônibus.

Quando cheguei ao apê onde ficaria hospedado, "surpresaaa"!!! Uma festa de boas-vindas me havia sido preparada, sendo que eu nao conhecia uma pessoa sequer daquelas que me recebiam. Ok, nao era bem uma festa, estava mais para um reuniaozinha cerveja-com-amendoim feita pelos amigos de um amigo de um amigo meu, mas mesmo assim serviu pra que eu me sentisse amado por ali. Nao que eu nao me sinta amado no Brasil, é claro que sim, mas quando você se depara com uma situaçao dessas, percebe que ainda existe gente como você, que gosta de espalhar alegria pelo mundo. Sei que é meio estranho eu dizer isso depois de toda a visao pessimista que esbocei até aqui, mas quem me conhece sabe como sou uma pessoa amável e bondosa. Aos que estiverem em dúvida em relaçao a essa minha última frase, podem ir à merda.